segunda-feira, 7 de novembro de 2016

MULHER SULFITE- Quando o divã não respeita fronteiras.

MULHER SULFITE
Ela pensava na sua vida não só no divã, então, qualquer lugar poderia se tornar extensão da sua terapia. Qualquer circunstância despertava emoções recolhidas em seu íntimo. O planejamento era apenas ir até à papelaria mais próxima pra completar a lista de material do filho. A lista exigia o papel sulfite e, naquela oportunidade, não lembrava como era aquele papel.
De repente, ela bradou:
- Não sabia que isso era o papel sulfite!
- O papel oficio é o papel sulfite?!
Sem conseguir disfarçar sua perplexidade, sentiu-se idiota durante uma fração de segundo. Ela nunca soube que aquele papel, tantas vezes, usado para diversas finalidades, também era conhecido com esse nome estranho. O papel sulfite ali, naquela ocasião, não serviu apenas para provocar constrangimento, mas também para puxar o novelo de suas emoções mais íntimas.
Algumas vezes nos apresentam as coisas, sem termos a chance de conhecer suas definições. Com ela, também acontecia a mesma coisa, ela se sentia estranha demais nos últimos tempos.
Órfã de uma explicação, carente de definições e sem justificativas para suas emoções tudo podia ser útil naquela altura da vida, claro até mesmo ser encarada pelo papel sulfite. De repente suas amigas arriscavam dizer que era depressão, na contramão sua bisavó materna, ainda viva, jurava ser vento virado ou espinhela caída.
De uns tempos para cá, ela tinha vontade de chorar, porém não conseguia verter lágrimas. A dor não tinha combinado com o almoxarifado das emoções a cota de choro. A situação era que diante da angústia, tinha acostumado a fazer de conta que estava tudo bem.
Ela queria amar, todavia, não sabia por onde começar. Sempre lhe disseram que devia começar amando a si mesmo. Depois de ler tudo sobre autoajuda, ainda se sentia perdida no labirinto de suas emoções. Sentia que precisava ir, mesmo sem ter decidido o destino. Queria chegar, sem ter partido.
Fazendo coro com o resto de sua vida, na ocasião precisava sentir saudade de algo. No máximo, conseguia sentir um abismo crescer dentro de si mesmo. Antes de sentir falta precisava da cumplicidade da lembrança. Invertendo a lógica da saudade, cogitava sentir falta do que nunca teve.
A vontade de ir não era possível, pois não tinha um itinerário confiável, então, conseguiu a pensar numa fuga. Toda fuga precisa de um planejamento mínimo, a fuga só é interessante quando nos afastamos do que mais tememos. Ela fugia para dentro de si mesmo, ou seja, o lugar mais ameaçador que ela conhecia.
Por fim, quando ela foi apresentada ao papel sulfite na papelaria, claro, levou um susto. Diante de si estava o retrato de sua vida atual, ela lembrou que faltava não só entusiasmo, mas, sim, repertório emocional para classificar o que acontecia dentro dela. Ela sabia que aquilo não era de hoje, talvez tivesse começado muito antes dela ter a necessidade de justificar para os outros o que sentia atualmente.
Afinal, aquela mulher se rebelou contra todos os que queriam explicações, quando sentiu uma ligação forte, uma espécie de parentesco descoberto na última hora. O papel sulfite fechado, lacrado e sem graça estava, ali, olhando para ela.
Ele precisava ser resgatada daquela papelaria , da mesma forma, que necessitava encontrar um pote de tinta que pudesse colorir e rabiscar sua vida com alguma emoção.
Por último, ela foi para a papelaria buscar o papel sulfite, porém, esse foi o passaporte para reconhecer a urgência de redesenhar uma nova existência. O papel queria ser rabiscado sem parcimônia, perder o semblante pálido e sem graça do branco usual.
Embora aquela mulher não tivesse tanta lucidez, também necessitava colorir sua vida com a vivacidade das cores do amanhã. A escassez de definições para certos momentos da vida, faz o imponderável ser útil nas circunstâncias mais distraídas.
O papel sulfite foi o reflexo de um alma cansada e, ao mesmo tempo, a esperança de recomeço, pois , em tese, aquele papel tinha urgência também de ganhar sentido.
Num pacto silencioso, tendo como testemunha as paredes daquela papelaria, ficou acertado o seguinte entre aquela mulher e o papel sulfite:
-Vamos recomeçar!


MARCOS BERSAM
PSICÓLOGO CLÍNICO
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