sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

RETALHOS DE AZULEJOS


Sabe aqueles dias; ou melhor, aquelas noites que você sente uma vontade inexplicável de fazer companhia a si mesmo e o que menos importa é o destino; pois envolto nessa sensação quando dei por mim estava a dirigir meu carro escutando Elton John. De repente percebi que tinha que eleger um destino; ou uma parada; logo quando não sabemos para onde vamos podemos nos perder e isso sei que é perigoso. Escolhi o barzinho mais movimentado da zona sul; desacompanhado, mas não solitário pedi ao garçom a primeira cerveja da noite. Vocês sabem como é a vida noturna; gente falando mais do que escutando; carros potentes desfilando sons ensurdecedores que denunciam muitos adultescentes; uma mistura de adolescente com adultos. E na noite você com certeza estará cercado de vendedores de amendoins; CDs; DVDs; flores. Diante desse cenário quando o tédio dava sinais de me afligir; e num misto de desolação e tentando acreditar e conversar com pessoas que se acham sábias e inteligentes depois de alguns goles. Até aí não é novidade; pois sempre depois de certo tempo na mesa de um bar todos se atrevem sofismar sobre algo; alguma filosofia e por ai a noite toma contornos menos trágicos. Quando menos esperava chegou até a mesa em que estava um garoto que desmontou toda aquela basbaquice. O menino trazia no semblante olhos assustados com um misto de esperteza; sua pele negra; emoldurado por sobrancelhas finas e lábios também bem delicados mostravam que era um garoto bonito apesar de estar maltratado pela miséria. Podia se perceber que a camiseta e a sua bermuda não eram de sua numeração o que me fez pensar que tinha sido alguma doação; os pés descalços e sujos. As suas mãos pequenas e também pigmentadas com uma espécie de tinta. E o interessante é que esse garoto aparentando no máximo uns oito anos de idade carregava alguns retalhos de azulejos de formatos diversos e quebrados em uma de suas mãos. Antes de falar aquele não que sempre falamos quando estamos ameaçados; sem saber o que o outro precisa deixei que o garoto se aproximasse e dissesse o que queria. Ele me perguntou se podia fazer uma pintura improvisada num daqueles pedaços de azulejos. Sem nenhum apoio ou lápis; o mesmo colocou um pouco de tinta no indicador e começou a executar sua obra de arte; antes que o mesmo estivesse pronto já pude perceber e antever a paisagem que nasceria logo ali naquele pedaço de azulejo. Logo percebi que deveria perguntar quanto era; ele não estipulou e apenas disse que poderia dar o que acharia justo; fiquei na hora impressionado com a palavra justo; como saber o que é justo numa noite daquela em que um garoto trabalhava; talvez faminto de alimento; de reconhecimento de oportunidade. Não me sentia nem um pouco a vontade de dizer o que era justo! Ele fingindo que não tinha notado minha saia justa criada com a minha pergunta sem maldade me permitiu mudar o rumo da conversa. Perguntei ao jovem seu nome; e como ele arrumava aqueles pedaços de azulejos; com uma velocidade de raciocínio e uma fluência verbal ímpar ele disse que nunca faltaram obras e reformas na redondeza. Esse episódio me impressionou pela capacidade do ser humano não se colocar como vitima da situação; na verdade ele não pedia esmola; pedia atenção e reconhecimento. Ele fazia do refugo; do entulho e do lixo matéria prima para ser notado para se fazer sujeito no mundo. Existem pessoas que tem muito mais do que retalhos de azulejos de obras para recomeçar a vida e mesmo assim se lançam em lamentações sem fim; pensando que a vida foi injusta ou que merecia muito mais. Acredito que a vida; os universos em sua sabedoria sempre nos provem do mínimo; nunca nos retira tudo. Esse garoto com certeza não será um grande vencedor; ele já é. O ser humano quando acredita em sonhos com certeza vence barreiras e obstáculos. Ele com toda a sua inocência embrenhada com a malícia da vida noturna me colocou em xeque quando questiona a minha consciência com a expressão justo diante de sua conduta; de seu trabalho. Vocês sabem que a consciência não tira férias e quando é chamada quer participar a revelia de nosso orgulho ou de qualquer hipocrisia. A ajuda não é negada; pois inconscientemente esse comportamento do garoto nos toca. A nossa vida também é parecida com a desse menino; sempre abandonamos os retalhos de azulejos ofertados pela vida a nós; muitas vezes nos lançamos em busca de uma obra de arte de algum pintor famoso; ou atrás de telas que são copias mal feitas de telas de grandes nomes da pintura. Então se você tem mais do que um retalho de azulejo para viver; não espere mais você já tem o suficiente para recomeçar. O garoto está pelas ruas e você quando encontrá-lo pode sentir que você não está sozinho com seus retalhos; e quem sabe não podem se ajudar.
MARCOS BERSAM
PSICÓLOGO CLÍNICO

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