segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

QUEM AMA CUIDA; NEM QUE SEJA DE SI MESMO


O violão estava ali; no mesmo lugar; emoldurado por um jogo de sofás e uma estante. Não sabia precisar quanto tempo fora à última vez que tinha solicitado uma melodia ou arriscado alguns acordes. Por um instante jurava que era ele que me olhava; como se quisesse dizer algo. Num despertar súbito de minha já combalida lucidez; permiti-me conter qualquer rompimento mais severo com a realidade. Resguardando-me mesmo que precariamente de um surto psicótico; resolvi escrever algo que permitisse uma viagem de ida e volta. Garimpei com o maior zelo possível no meu mediano vocabulário e o único predicado encontrado por mim para aquele pobre instrumento é o imobilismo catatônico e uma apatia contagiante.

Intuía sem a anuência ou consentimento daquele pobre instrumento; mas acredito não sei como que aquele violão ali não era incomodado pela poeira; acredito que o pior sofrimento de um instrumento é o abandono; o som; o acorde nasce de uma romance que envolve um cuidado mútuo entre o músico e o instrumento. Um olhar um pouco mais acurado percebia certa tristeza naquele instrumento; se o mesmo fosse atendido por um psiquiatra o mesmo não titubearia em receitar algum ansiolítico.

E nesse afã de socorrer aquele instrumento; porque não arriscar alguma melodia. E nesse afã de reverter àquela situação pensei em solfejar alguma melodia e tentar arriscar alguns acordes; quando pra minha surpresa saltitou em minha mente a musica sozinho do Caetano Veloso. “às vezes no silêncio da noite... eu fico imaginando nós dois... quando a gente gosta é claro que a gente cuida. É verdade; a música diz que quando amamos cuidamos do outro; isso já virou um clichê em programas na mídia; tornou-se trivial. Nessa música a assertiva é categórica; quando a gente ama é claro que a gente cuida; mas de quem se cuida? Do outro ou de mim; ou de ambos? O que pouco se fala é do poder do amor de cuidar de si mesmo.

Não sei se vocês sabem; mas o amor em excesso pode gerar pessoas inseguras emocionalmente; mães superprotetoras geram adultos inseguros com auto estima comprometida ora sentem-se dominados e aturdidos por um complexo de inferioridade. Outra vertente possível na criação é a rejeição do filho; é importante ressaltar que esse dispositivo pode ocorrer ainda na gestação; entende-se rejeição aqui não como dizer não; mas não se entusiasmar; acredito que a apatia é o parente mais próximo do sentimento da rejeição de uma gestação.

Um dia esse adulto que ora foi superprotegido ou rejeitado terá a oportunidade de se apaixonar; seria possível um indivíduo que foi violentado no momento mais importante do seu desenvolvimento amar de maneira plena? E ai como fica a equação da música quando a gente gosta é claro que a gente cuida. Como cuidar do outro se não sei cuidar de mim mesmo? se não sei estar em minha companhia? Como já dizia algum filósofo: Quem se entedia com sua própria companhia está em péssima companhia. A verdade é que o sinal de saúde psicológica é saber o quanto; quando e como devemos cuidar de nós; pois a confusão destes momentos podem nos arrastar para o egoísmo ou nos lançar ao desleixo existencial. Em ambos os casos os extremos são estados de morbidez psíquica.

Quando falo em cuidar; não estou me reportando ao ato de comprar cremes; xampus ou creme dental; fazer cirurgias plásticas ou adquirir um carro novo.. Cuidar não é responder aos apelos da mídia; cuidar representa algo maior que transcende a mesquinhez dos dias atuais. Cuidar é configurar sua vida para um sentido existencial tal como falava o emérito Victor Franckel quando sugeriu a logoterapia. O amor próprio não é o principio hedonista dos dias atuais; nem muito menos o egoísmo de preterir o outro; o amor a si mesmo é ser apresentado a sua limitações; sentir o frescor dos obstáculos; e quem sabe degustar um pouco de sofrimento e os dissabores da caminhada.

Cuidar é aprender a valorizar seus desejos; respeitar-se enquanto indivíduo separado e único. Hoje vemos pessoas que enamoram e se relacionam porque aspiram que o outro o parceiro; marido ou namorado faça o que ela deveria ter como dever de casa. Cuidar de si em primeiro lugar; não responsabilizando ninguém por esse ofício que é peculiar de cada um de nós. É muito comum você ouvir estou com fulano porque ele cuida de mim; olha quem busca alguém para cuidar na verdade não busca um companheiro; busca uma figura parental que deveria ter tido o seu papel deixado na infância. E na confusão cada dia mais presente nos dias atuais amor de confunde com gratidão ou remorso ou até culpa; na verdade o amor nunca exerce a sua função que seria incorporar o ideal de liberdade de se permitir quem realmente se é. Ai está montada a equação neurotizante; quem ama cuida mesmo sem querer do outro sim; mas porque não carece de ser cuidado; quando cuido do outro sem interesse e de maneira espontânea estamos diante do amor genuíno.

Agora se você cuida do outro; na impossibilidade de cuidar de si; quando você projeta no outro o cuidado que um dia você Gostaria de receber; numa forma de retribuição. Não tardará e você cobrará esse cuidado com juros e correção monetária. Dizendo ao seu parceiro fiz isso; aquilo e mais isso tudo e você o que me deu em troca?. Na verdade ninguém vai te encontrar num barzinho dizendo que não sabe cuidar de si mesmo. Na verdade o que a outra fez não foi cuidar de você; mas simplesmente te aprisionar em sua neurose; na qual a moeda que ele conhece é o azedume da dívida emocional; da cobrança do famoso jogar na cara. Então antes de ficar repetindo aquela frase sem pensar que quem ama cuida; deveria refletir só consegue amar de verdade que um dia aprendeu a cuidar de si antes de qualquer coisa.

E não sei se por uma percepção falha minha parece que o violão agora não estava como antes; mesmo que meio fora do tom da música e o acorde não estar em tamanha sintonia; mesmo sabendo que sou um músico mediocre parece que é possível até ver o esboço de um sorriso no canto direito do violão claro que me senti invadido por sensação única de paz ou seria amor?

MARCOS BERSAM
PSICÓLOGO CLÍNICO

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